XENOFILIA E A NEGAÇÃO DO SER
Zumbi fugiu de uma Igreja para o Quilombo dos Palmares, e tornou-se o maior líder libertário da história nacional, e um dos maiores do mundo. Nós, seus herdeiros que lutamos contemporaneamente, o alçamos ao panteão dos heróis nacionais, símbolo maior da luta do povo negro brasileiro, contra o racismo, por humanidade, por equidade.
Mas, hoje, quem são os negros que querem levar Zumbi dos Palmares de volta para a Igreja?
Nos referimos aqui às chamadas “missas afro”, durante as quais pessoas se fantasiam com indumentárias e símbolos que remetem a uma aparente identidade afro - roupas coloridas, turbantes, batas, tambores, entre outros, desde que higienizados dos conteúdos ancestrais africanos, considerados inadequados, primitivos, pouco civilizados, e até domoníacos. Com a cumplicidade de negros e negras xenófilos, se apropriam destas “alegorias”, e as utilizam para reverenciar, venerar e fortalecer a hegemonia de uma instituição que historicamente é co-responsável pelo maior dos crimes de lesa-humanidade, a escravidão de milhões de africanos aprisionados e transladados para as Américas.
Nos envergonha as “mucamas contemporâneas” reproduzindo voluntariamente em pleno século 21, aquilo a que nossos antepassados foram submetidos, quando os senhores obrigavam os escravizados a limpar suas igrejas antes das celebrações cristãs. Se em algum tempo do passado alguns dos nossos se viram instados a “negociações” para a sobreviver à violência que lhes era impingida, e iniciaram esta prática de lavar escadarias de Igrejas, nada justifica a subserviência neste tempo em que temos escolha. Nos lembram o padre José Maurício Nunes Garcia, que ao pretender ser ordenado na Igreja Católica, sendo negro, foi necessário que implorasse a graça da dispensa do “defeito da cor”.
Parafraseando Steve Biko, Marcus Garvey, e outros que nos antecederam, um povo sem história é como uma árvore sem raízes ou como um carro sem motor, está fadado a cair, a não ir a lugar algum.
Por isso, vamos recordar um pouco.
Lembremos daquelas pessoas que aprisionadas na África eram submetidas aos símbolos do domínio conjunto da Igreja e Coroa Portuguesa, o batismo, a marca com o ferro e o nome cristão.
Da bula “Romanus Pontifex”, através da qual o Papa Nicolau V autoriza em 1454 a escravização de africanos, argumentando que negro batizado e “resgatado” para a fé católica é negro salvo para a eternidade.
Do cinismo expresso nas palavras do Padre Antônio Vieira, sobre a nobreza da submissão à escravidão, quando afirma no Sermão dos Canaviais
“Não há trabalho nem gênero de vida que seja mais parecido à cruz e a paixão do Cristo, que o vosso... Aproveitem-no para santificar vosso trabalho em conformidade e imitação de uma tão alta, tão divina semelhança. Em um engenho, vós sois os imitadores de Cristo crucificado porque vós sofreis de maneira muito parecida o que o próprio senhor sofreu na cruz. (...) Os ferros, as prisões, as chicotadas, as ofensas, os nomes ignominiosos, de tudo isso é feita vossa imitação, pelo que, acompanhada pela paciência, vós ganhareis os méritos de mártir (...). Quando vós servirdes vossos mestres, não servirdes como aquele que serve aos homens mas como aquele que serve a deus, porque assim vós não servireis como cativos mas como homens livres. (...) A África é o inferno donde Deus se digna a retirar os condenados para, pelo purgatório da escravidão nas Américas, finalmente alcançarem o paraíso”.
Das palavras do Padre Manoel da Nóbrega, ao justificar o tráfico e a escravidão dos africanos
“... porque lhes veio por maldição de seu avós. Porque estes, cremos ser descendentes de Cã, filho de Noé, que descobriu as vergonhas do pai. Por isso são negros e sofrem outras misérias. Porquanto são condenados por Deus a serem para sempre escravos dos brancos.”
Da cumplicidade absoluta da Igreja com o escravismo, inclusive no processo de abolição, como bem descreve Joaquim Nabuco no seu livro Abolicionismo:
“Entre nós, o movimento abolicionista nada deve, infelizmente à igreja do estado, pelo contrário, a posse de homens e mulheres pelos conventos e por todo o clero secular desmoralizou inteiramente o sentimento religioso dos senhores de escravos. No sacerdote, estes não viam senão um homem que os podia comprar e, aqueles, a última pessoa que se lembraria de acusá-los. A deserção pelo nosso clero, do posto que o evangelho lhe marcou foi mais a vergonhosa possível: ninguém o viu tomar partido dos escravos, fazer uso da religião para suavizar-lhes o cativeiro e para dizer a verdade moral aos senhores. Nenhum padre tentou, nunca, impedir um leilão de escravos, nem condenar o regime das senzalas (...)”
“A ANCESTRALIDADE É A NOSSA VIA DE IDENTIDADE HISTÓRICA.
SEM ELA NÃO SABEMOS QUEM SOMOS E NEM O QUE PRETENDEMOS SER”
Sabemos que existem negros e negras que abrem mão de todo o cabedal teórico-filosófico que aqui chegou nos corpos e mentes dos africanos desterritorializados pelo sistema escravista. É um direito. O que não é direito é este uso folclorizado dos nossos símbolos, desrespeitando aqueles e aquelas que historicamente resistiram e insurgiram contra a violência escravista e policial, e principalmente ao racismo travestido de intolerância religiosa, reconstituindo-se enquanto identidade a alteridade, criando novos territórios e processos culturais, que possibilitaram a preservação dos seus modos de vida, idiomas, linguagens corpóreas, rítmicas e musicais, enfim, da sua cosmovisão; referimos à vivência comunitária propiciada pelo princípio do “ntu”; à relação sustentável com o meio ambiente e seu papel de complementaridade e continuidade da vida humana; ao cuidado e acolhimento que qualquer casa tradicional oferece a quem ali acorre, independente de quem seja, sem proselitismo ou imposição de valores como verdade única e absoluta.
Graças aos valores civilizatórios africanos subsistimos, e aqui estamos. Sem eles nunca seremos realmente livres, mas apenas títeres da cultura dominante, folcloricamente enfeitados.
O sujeito é, identifica-se e organiza-se partir do grupo, povo e território a que pertence. Esse pertencimento define quem é e quem não é, quem pertence e quem não pertence ao universo que é expresso, além do espaço físico, tanto pelas formas simbólicas, pela língua, quanto pelas inúmeras práticas e atividades concretas, sem qualquer sobreposição valorativa de superioridade ou inferioridade, mas apenas sendo quem É e o que É, sem precisar se esconder, numa relação em que os representados reconhecem seus representantes; e os representantes não tentam se passar pelo que não são.
MEUS ANTEPASSADOS DORMEM NA MINHA LÍNGUA, FORMAM MINHAS PALAVRAS, PENSAMENTOS QUE NÃO PENSEI ME ACOMPANHAM E ME SUSTENTAM. É A MINHA CULTURA
ZUMBI VIVE!
Ribeirão Preto, 19 de novembro de 2015
PAULO CÉSAR PEREIRA DE OLIVEIRA
(Baba Ifatide Ifamoroti)
Fundador do Centro Cultural Orùnmilá
Nenhum comentário:
Postar um comentário