domingo, 8 de outubro de 2017

Coragem eu te enchi de fome. Por Bianca Levy.



Coragem eu te enchi de fome.

Por Bianca Levy - originalmente publicado no perfil de facebook

-O que é isso? É um protesto, uma promessa, um movimento social?- perguntou um homem ao ver aquela imagem rodeada por folhas frutas e cartazes.
- Não, senhor, é só gente mesmo, como você, falando sobre problemas que atingem toda a coletividade- respondi enquanto filmava a movimentação no entorno.
-Ah, sim, legal, parabéns- ficou pensativo por uns cinco segundos- Se todas as pessoas tivessem essa coragem, talvez o país não tivesse do jeito que está.
Este foi um entre vários romeiros que aplaudiram, vibraram e se instigaram com a performance executada por Leandro Haick dentro da procissão do Círio de Nazaré 2017. Em uma edição marcada pela visita de personas non gratas, que põem em xeque as liberdades fundamentais do povo brasileiro, o trabalho do artista foi ato de resistência e coragem.
“Adoremos a Viada Pagã”, foi uma performance de caráter panfletário, com uma estética provocativa, que evocou realidades invisibilizadas, como a dos LGBTT’s, indígenas, afro-religiosos e mulheres negras. Carregando a imagem de um veado em um andor- em alusão ao bezerro de ouro do paganismo e também a causa LGBTT- o artista saiu da esquina do Bar do Parque (mais um símbolo de resistência recentemente roubado do povo) em direção à Basílica Santuário, fazendo o percurso do Círio antes mesmo da santa e dos carros de milagres.
Embora já tivesse feito duas performances preliminares no contexto da quadra nazarena, fazer um trabalho desta dimensão dentro de uma festa/procissão do porte do Círio, traz um peso e uma responsabilidade muito grande, linha tênue onde pode-se esperar tudo. Acompanhado de uma equipe voluntária com cerca de 15 pessoas, entre amigos, artistas e articuladores, a Viada Pagã saiu em cortejo, atraindo curiosos e todo o tipo de reações que se pode encontrar em um momento limite e apoteótico. “O que eles estão fazendo aqui? Isso aqui não é lugar de vocês”, “Nojentos”, “doentes”, “Monte de doidos!”, foram algumas das frases que ventiladas pelo caminho.
Afunilados e vigiados a cada passo dentro de uma multidão de dois milhões de pessoas, por um momento pairou entre os presentes que algo sério poderia acontecer. E não se teria nem chance de reação. Mas isso foi apenas a bruma de uma tensão, interferência esperada na poética performance da vida. Os xingamentos, comentários preconceituosos e a tentativa de desmobilização da performance (ensaiada por alguns membros da diretoria da guarda de Nazaré) foram abafados por aplausos calorosos vindos da arquibancada da Avenida Presidente Vargas, talvez o momento mais emocionante da performance, quando a “berlinda” do artista se voltou para o público e as placas foram levantadas.
“Paz-me!”; “Terreiros são sagrados”; “Meu útero não tem religião”, “Quilombola existe”, “Povo preto vivo”, e “O Brasil é preto”, foram algumas das frases entoadas entre anjos e promesseiros que coexistiam em um espaço de fé, sobretudo de fé em dias melhores. Após três horas de performance, a equipe dispersou na esquina da Basílica, ainda sob impacto da ação e com a sensação de dever cumprido.
Já com o corpo frio e revendo a transmissão ao vivo, talvez o que cada um pense é que o que foi visto nas ruas do Círio hoje não foi apenas um ArteFato, mas um ato de coragem. Em uma sociedade adoecida pelo preconceito, misoginia, lgbttfobia, racismo religioso e corrupção, artistas como Leandro Haick se mostram necessários, uma voz que ecoa consciências silenciosas, adormecidas, e que grita a fome de um mundo justo.
Sobre o trabalho: “Adoremos a Viadã Pagã” é a performance que fechou a trilogia de Leandro Haick dentro da quadra Nazarena. O primeiro trabalho do gênero foi a performance “Flor Manifesta” (2011), onde ele apresentou o corpo político ambulante envolto em uma delicada carcaça de flores, e toda a sexualidade e religiosidade que o permeava. Em 2014, Haick expôs “A Carne de Viado é Ouro”, feita em trajeto contrário ao da Santa, durante a trasladação. Em uma performance pulsante, o artista, que era próprio Viado de Ouro (em alusão ao prêmio oferecido na Festa da Chiquita), questionou as tensões existentes entre o sagrado e o profano, além do sincretismo religioso dentro da programação do Círio, lembrando de reverenciar o guardião das encruzas neste caminho, oferendando a ele cachaça e velas vermelhas. Os bastidores e as três performances do artista serão compiladas em um documentário com previsão de lançamento em 2018.







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