Por Socorro Patelo
Resenha do livro Cartografia social dos afrorreligiosos em
Belém do Pará.
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VALLE,
Camila do (Org.) et all.
Ed: Rio de Janeiro, Belém: Casa 8, IPHAN, 2012. 190p .
De
início pensei em encontrar mapas, pensando em cartografia como arte
de compor mapas, no caso mapeamento social dos afrorreligiosos de
Belém. Mas me deparei com um quadro social descritivo das diversas
comunidades religiosas de origem africana, que, de uma forma anti
literária, traduzem suas experiências místicas e o conflito entre
o mundo de seus deuses e o mundo político dos brasileiros, onde
estão inseridos.
Reunidos
em terreiros – palavra portuguesa para área de terra – que em
yoruba é egbe;
ou casa (ilé,
ou ilé
axé,
casa de axé),
ou como dizem os pertencentes à nação Angola (manso,
Abassá, inso
ou cazuá
Ngunzo-Ngunzo);
ou o chamado barracão, onde eles colocam em xeque os discursos
historicamente estabelecidos como lógicos, que se pretende fixar e
explicar objetivamente.
Quando
os povos africanos vieram para o Brasil, a intenção é que
perdessem tudo: liberdade, família, língua, nação, tribo a que
pertenciam e tudo o mais que poderia identifica-los como pessoas. A
tragédia social que viveram teve a fé em suas divindades, como
único sustentáculo e força de preservação de humanidade e
valores civilizatórios. Foi a fé que manteve (e mantém) suas
identidades, ainda que, com o decorrer do tempo tenha havido
sincretismo, mudanças em suas práticas, através da mútua
influência das várias nações, dos vários dialetos que falavam,
assim como de outros povos oprimidos, como os povos indígenas.
A
desconstrução de suas identidades levou-os à construção de uma
identidade religiosa e cultural (africana) formada das diversas
nações (Umbanda, Mina Jeje Nagô, Angola, Keto Jeje Savatu e a
Pajelança). Eles se reconstroem nos terreiros, dando significados às
suas próprias vidas, na cena de seus signos sagrados, sua música e
sua dança (uma espécie de dança de roda de Angola, que em banto
era semba,
ou samba,
na língua quicongo e na língua umbundu, significava
"agitado"),assim como em seus adereços (colares,
pulseiras, tiaras etc.).
Em
cada detalhe, esses povos também se reconstroem em uma África
brasileira e amazônida. A terra de origem tem o caráter mágico no
papel de um elemento crítico e valorativo. O mágico é a dimensão
da origem. Eles são africanos, ainda que tanto tempo tenha se
passado. Sua origem não foi perdida com a tentativa de desconstrução
social. No interior dos terreiros, eles detêm um conhecimento que
não lhes pertencem e que é passado às gerações posteriores
através da oralidade e da memória. É Ifá
(o
oráculo) quem profetiza e dá as orientações e desejos dos orixás
(entre os Yorubas) ou Jinkisis
(entre
os de Angola), pois tudo tem um segredo divino. “Tudo
tem fundamento e tudo tem um tempo.”
Nada há de natural na natureza. Ela é ao mesmo tempo cultural,
natural e divina.
Mas
para a socierdade brasileira o caráter de suas comunidades foi
lapidado nos preconceitos, na intolerância social, na repressão, na
incompreensão e nas violências que sofreram e que ainda hoje sofrem
como demonstram seus depoimentos. Ainda assim, preservam suas
tradições. Mesmo que a complexidade de suas relações e diferenças
ritualísticas manifestados nas várias nações e segmentos, eles se
adequam às circunstâncias políticosociais, buscando cidadania,
liberdade de expressão, liberdade religiosa, o direito de oferecer
suas oferendas aos seus orixás, de confortar doentes em hospitais,
de cultuar os ancestrais nos cemitérios.
O
mapeamento tem por base a visualização dessas diversas nações e
seu fortalecimento como religião, buscando minimizar os
distanciamentos que impedem a aceitação de culturas diferentes,
combatendo a discriminação religiosa, melhorando a relação entre
suas próprias comunidades e ainda, buscando interação com
população. Na visibilidade social e política, eles tem procurado
sair do anonimato a que foram relegados para mostrar que, como toda
religião verdadeira, também buscam a paz, a harmonia social,
promovem trabalhos sociais, inclusive filantrópicos e merecem o
respeito dos demais.
Os
depoimentos contidos no livro são importantes como objeto de
estudos, seja na área de direitos humanos, posto que seus
personagens clamem serem justiçados e verdadeiramente legalizados;
seja na área da política democrática, sinônimo de igualdade; seja
nas dimensões culturais da antropologia, pesquisando-se a relação
identidade e alteridade; seja porque contém rico material para o
campo de pesquisa da psicologia social e os fenômenos de grupos –
algozes e/ou vítimas – de racismo, fanatismo, linchamentos,
perseguições, etc., podendo abranger estudos da sociologia, da
ciência política, da pedagogia (vide Paulo Freire, Pedagogia
do Oprimido)
e da filosofia, que reflete sobre toda atividade humana, na busca de
seu significado.
O
grupo de afrorreligiosos é como “Macunaíma”
de Mário de Andrade, que nasceu “preto
retinto e filho do medo e da noite”.
Na atualidade, o medo que os acuava está se expondo à sociedade,
para que esta possa conhecer a riqueza desse grupo que manifesta sua
visibilidade. Para compreendê-los é preciso imergir em sua cultura,
desfazendo o ofuscamento social secular.
Com
essa cartografia, eles esperam que Marx tenha razão, e que “tudo
que é sólido se desmanche no ar”,
fazendo ruir o sólido império do preconceito e da discriminação
que os situa na exclusão social prejudicial aos seus direitos
humanos mais fundamentais de igualdade e de liberdade.
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